28/07/2016

Intolerância

Xenofobia e ódio

Brasileiro larga Olimpíada

28/07/2016
Em 2004, o oficial do Exército do Azerbaijão Ramil Safarov assassinou a machadadas o tenente armênio Gurgen Margaryan. A vítima sofreu 16 golpes e foi quase decapitada enquanto dormia. Condenado à prisão perpétua na Hungria, país em que aconteceu o ataque, Safarov foi deportado para sua terra natal em 2012. Lá, foi recebido como herói nacional no aeroporto por numeroso grupo de apoiadores. Ele foi perdoado pelo presidente Ilham Aliyev, promovido a major e recebeu o salário correspondente aos oito anos em que esteve preso.

Para o enxadrista brasileiro Krikor Sevag Mekhitarian, 29, descendente de armênios, episódios como esse expressam a discriminação aos compatriotas de seus familiares que hoje estaria disseminado no Azerbaijão, “inclusive por pessoas como o próprio presidente do país” –Aliyev continua no poder. Por isso, um dos 12 grandes mestres do Brasil, posição máxima na hierarquia do esporte, abriu mão de disputar a Olimpíada de Xadrez de 2016, que acontecerá em setembro em Baku, capital azeri. Trata-se de um gesto de repúdio e de temor.

“Existe uma cultura do ódio com a qual não compactuo. No Azerbaijão, existe o ódio aos armênios, que são atacados simplesmente por serem quem são, por terem nascido em um certo país. Não tenho vontade de estar em um lugar assim, com tanta afronta aos direitos humanos. Sou contra a intolerância de todo tipo, que vemos inclusive aqui, no Brasil: por orientação sexual, cor da pele, formas de pensar, e meu ato manifesta essa minha postura”, diz à Folha.

“Além disso, minha família não ficaria feliz nem tranquila se eu fosse. Também não me sentiria seguro, e poderia transmitir minha tensão ao restante da equipe.”

A Olimpíada é o torneio mais importante do circuito internacional de xadrez e acontece a cada dois anos. Mekhitarian conta que toda a preparação diária converge para o campeonato, e então a desistência gera vazio na rotina. Ele segue se preparando para torneios menores nos próximos meses, no Brasil.

“Este é o único torneio para o qual o enxadrista vai tranquilo, com apoio financeiro da confederação. Tudo o que faço é pensando na Olimpíada”, conta, dando dimensão do que abriu mão ao desistir de sua participação. A equipe não poderá contar com o terceiro brasileiro mais bem colocado no ranking internacional atualmente.

No século 20, Armênia e Azerbaijão entraram em diferentes batalhas entre si. Mais recentemente, o conflito em Nagorno-Karabakh, região dentro do Azerbaijão onde vive uma maioria étnica armênia, é o núcleo da tensão. Em abril, 30 soldados -18 armênios e 12 azeris- morreram em confrontos.

Descendente de armênios tanto por parte de pai como de mãe e educado nessa cultura (ele estudou em colégio da comunidade e fala o idioma com parentes), Mekhitarian se dedica a um esporte cuja aparente pacacidade não revela a atenção que recebe no país asiático.

Nos locais que fizeram parte da União Soviética, o xadrez foi valorizado como uma prática que expressava a potência intelectual de um povo e foi colocado no centro da contenda internacional dos sovietes com os norte-americanos nos anos da Guerra Fria. Os enxadristas têm destaque na hierarquia social dessas nações até hoje.

“O xadrez é um esporte nacional na Armênia, e lá os jogadores são tratados como celebridades. Na última década, a equipe do país ganhou três vezes a Olimpíada (2006, 2008, 2012). Na Rússia, o maior jogador latino-americano, o peruano Julio Granda, que é muito temido por aqui, estaria longe de conseguir uma vaga na equipe nacional”, explica Mekhitarian.

Nos últimos dias, a imprensa local têm especulado que a delegação armênia também desistirá de participar da Olimpíada.

No Brasil, enquanto fervem os neurônios para projetar as situações nos tabuleiros (existem perto de 170 octilhões possibilidades de mexer as peças nas dez primeiras jogadas), os atletas se preocupam com o próprio sustento. Com parco apoio público ou privado, eles se mantêm com aulas particulares, cursos em escolas e premiações em torneios. Grandes mestres como Mekhitarian cobram mais de R$ 100 por hora de aula, mas a demanda não é grande. Além disso, o tempo dedicado a aulas faz falta

“Não há um projeto estruturado para o xadrez no país. Depende do esforço e do talento próprios. É viável viver de xadrez aqui, mas não é fácil”. Ele formou-se em administração de empresas no Mackenzie em 2009, mas não exerce a profissão.

Vinculado de alguma forma a dois países que sofrem com violências, Mekhitarian deposita sua crença no esporte como refúgio.

“Xadrez é paixão. Não é para pessoas superdotadas, como muitas vezes se pensa. Acho que todo mundo apreciaria se soubesse os movimentos. Existe uma grande quantidade de amadores que são atraídos pela beleza, que apreciam uma partida como forma de arte. Eu não consigo separar profissão e hobbie na minha vida.”