Do que as meninas são feitas

20/02/2017

Muitos anos atrás, uma canção de ninar inglesa do início do século 19 chegou à então URSS. “What Are Little Girls Made Of?” tornou-se desde então um marco cultural, uma composição que cada menino e menina russos aprendem no jardim de infância – é até parte de programas escolares. Nas letras da canção, os meninos são feitos de coisas como “fogos de artifício e baterias de energia”, enquanto as meninas são feitas de “anéis, flores e marmelada”. Mas essa letra acaba de mudar.

Em meio à controvérsia sobre a lei que descriminaliza a violência doméstica no país, a divisão russa da Nike lançou um filme de dois minutos que reinterpretou a canção.  A campanha coincide com o lançamento da nova campanha de vendas da Nike, “Made of …”, que conta com famosas atletas russas.

A garota no filme começa a cantar as palavras da música original mas rapidamente muda a letra. “Nossas meninas são feitas de ferro, de aspirações, de dedicação e batalhas, de persistência e graça, de contusões, de coragem e punhos cerrados, de independência e habilidades, de paixão de coração. E da dignidade, da fé mais forte do que a rocha, da força e do fogo (..), nossas meninas são feitas de realizações”, canta. Em cena surgem a patinadora Adelina Sotnikova, a lutadora de MMA Anastasia Yankova, a dançarina de balé Olga Kuraeva, a atriz Irina Gorbacheva, as skatistas Katya Shengelia, a campeã de atletismo Kristina Sivkova, a treinadora do Nike + Training Club Anastasia Kotelnikova e a jogadora de futebol Ksenia Lazareva

Machismo e violência

No início de fevereiro, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sancionou uma lei controversa que descriminaliza algumas formas de violência doméstica. A lei, que percorreu as duas casas do parlamento russo antes da assinatura presidencial, é considerado um enorme retrocesso. No país, uma mulher morre a cada 40 minutos de abuso doméstico. A nova legislação torna a  violência “moderada” dentro das famílias uma ofensa administrativa e não criminal.

De agora em diante, espancamentos de cônjuges ou filhos que resultem em hematomas ou sangramento, mas não em ossos quebrados são punidos com 15 dias de prisão ou uma multa, se não acontecer mais de uma vez por ano. Anteriormente, o espancamento podia levar a uma pena máxima de prisão de dois anos.

Para quem defende a lei,  as tradições russas trata a família como sagrada e a punição aos espancamentos seria uma forma de interferência indevida do Estado. O sacerdote Dmitry Smirnov, chefe da comissão do Patriarcado Ortodoxo Russo em questões de família, disse em um programa de televisão que a idéia de que a legislação anterior “era uma imposição ocidental sobre a Rússia”. “Algumas das coisas que acontecem no norte da Europa agora são tais que até mesmo Hitler não poderia ter sonhado com eles”, afirmou.

Algumas das principais discussões sobre gênero e violência doméstica na Rússia podem ser chocantes. Um artigo na seção de ciência do tabloide popular Komsomolskaya Pravda chegou a publicar que “estudos científicos recentes mostram que as esposas de homens com raiva têm uma razão para se orgulhar de suas contusões. Os biólogos dizem que as mulheres espancadas têm uma vantagem valiosa: elas mais freqüentemente dão à luz meninos!”

O artigo foi posteriormente alterado.

Cerca de 300 mil pessoas assinaram uma petição para protestar contra as alterações na lei e uma campanha on-line também tentou trazer o problema de abuso doméstico para sensibilizar as autoridades russas. Usando a hashtag #Iamnotscaredtospeak, milhares de mulheres russas compartilharam suas histórias de assédio sexual, violência e estupro em mídias sociais.

Com informações do Afisha.Daily e The Guardian.