03/08/2016

Intolerância

Reportagem de O Globo com o levantamento feito pelo Comunica Que Muda.

Redes da Intolerância

03/08/2016
A cantora Preta Gil dando entrevistas na delegacia após ser alvo de insultos racistas nas redes sociais – Agência O Globo

Brasil cultiva discurso de ódio nas redes sociais, mostra pesquisa

Cerca de 84% das menções sobre temas sensíveis, como racismo, política e homofobia, são negativas
Por Sérgio Matsuura

Publicado no jornal O Globo em 03/8/2016

 

RIO- Na Sociologia e na Literatura, o brasileiro foi por vezes tratado como cordial e hospitaleiro, mas não é isso o que acontece nas redes sociais: a democracia racial apregoada por Gilberto Freyre passa ao largo do que acontece diariamente nas comunidades virtuais do país. Levantamento inédito realizado pelo projeto Comunica que Muda, iniciativa da agência nova/sb, mostra em números a intolerância do internauta tupiniquim. Entre abril e junho, um algoritmo vasculhou plataformas como Facebook, Twitter e Instagram atrás de mensagens e textos sobre temas sensíveis, como racismo, posicionamento político e homofobia. Foram identificadas 393.284 menções, sendo 84% delas com abordagem negativa, de exposição do preconceito e da discriminação.

— Aquele brasileiro cordial não usa a internet no Brasil — diz Thiago Tavares, presidente da ONG SaferNet Brasil. — O que a gente tem visto nas redes sociais é o acirramento do discurso de ódio, de intolerância às diferenças.

Como resultado do panorama político gerado a partir das eleições de 2014, “coxinhas” e “petralhas” realizam intenso debate nas redes, na maioria das vezes com xingamentos e discursos rasos, que incentivam o ódio e a divisão. Do total de mensagens analisadas, 219.272 tinham cunho político, sendo que 97,4% delas abordavam aspectos negativos. A segregação virtual foi materializada no muro erguido no gramado do Congresso Nacional para separar manifestantes contra e a favor do afastamento da presidente Dilma Rousseff.

O segundo tema com maior número de mensagens foi o ódio às mulheres. Muitos internautas parecem não entender que lugar de mulher é onde ela quiser, e a misoginia se alastra pelas redes. Assédio, pornografia de vingança, incitação ao estupro e outras violências são, por vezes, travestidos de “piadas” que são curtidas e compartilhadas, reforçando no ambiente virtual o machismo presente na sociedade. Ao todo, foram coletadas 49.544 citações que abordavam as desigualdades de gênero, sendo 88% delas com viés intolerante.

Pessoas com algum tipo de deficiência, que lutam no dia a dia por seus direitos, também são achincalhadas nas redes sociais. O levantamento captou 40.801 mensagens sobre o tema, sendo 93,4% com abordagem negativa. Termos como “leproso” e “retardado mental” e o uso da deficiência para “justificar” direitos são usados nessas citações.

Em números absolutos, o Rio de Janeiro foi o estado onde mais citações sobre intolerância foram captadas, com 58.284, à frente de São Paulo e Minas Gerais, que têm maior população. Em termos relativos ao número de habitantes, o Distrito Federal lidera o ranking, com 11.986 citações para 2.914.830 habitantes.

— Ao contrário do que muita gente acha, o Brasil é intolerante. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país; a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada — ressalta Bob Vieira, diretor executivo da agência nova/sb. — As redes sociais fazem nada mais que amplificar esse ódio, reafirmar os preconceitos que as pessoas já têm.

AGRESSÃO INVISÍVEL

Vieira destaca que o levantamento captou dois tipos de intolerância. O visível, em que o agressor vai direto ao ponto; e o invisível, mais sutil, que se esconde em comentários que podem passar despercebidos, pois abordam discursos que já foram incorporados pela sociedade, mas não pelas vítimas.

— É quando a professora fala para a aluna alisar o cabelo para ficar bonita ou o crítico trata o Bolsa Família como esmola — diz Vieira.

O racismo também tem forte presença nas redes sociais brasileiras, com 17.026 menções, sendo 97,6% negativas. Casos recentes de ataques a celebridades negras geraram repercussão na sociedade. Em julho do ano passado, a apresentadora do Jornal Nacional Maria Júlia Coutinho foi uma das vítimas. Após investigação, o Ministério Público de São Paulo indiciou quatro homens por injúria e racismo. Em novembro do ano passado, o alvo de comentários racistas foi a atriz Taís Araújo. Na semana passada os haters miraram na cantora Preta Gil.

— Fiquei surpresa com uma premeditada avalanche de comentários corrosivos, ofensivos e gratuitos que mostram como a educação e os bons princípios estão perdendo a guerra para essa onda de ódio e violência que estamos vivendo — diz a cantora, que levou o caso à Polícia Civil. — Fiz a denuncia para mostrar que eu sou apenas mais uma a sentir na pele esse ataque virtual. Ninguém quer ter a janela apedrejada. Nem o negro, nem o branco, nem o gay, nem o gordo, nem o deficiente físico, nem a menina que frequenta o candomblé.

O levantamento também mensurou a intolerância pela aparência, homofobia, classes sociais, idade/geração, religião e xenofobia. Mais que constatar a existência do preconceito nas redes sociais, o estudo quer debater a tênue linha que separa o discurso de ódio do direito à liberdade de expressão. Paula Martins, diretora executiva da ONG Artigo 19, acredita que o combate à intolerância deve acontecer pelo fomento à tolerância e à pluralidade, não por medidas restritivas.

— O direito à liberdade de expressão não é absoluto, legislações tratam o discurso de ódio explicitamente como um limitador da liberdade de expressão — avalia. — Mas cada caso deve ser tratado de forma individualizada.

Essa é a mesma opinião de Lincoln Werneck, do Instituto Coaliza. O especialista acredita em ações educativas e de conscientização para reduzir a intolerância entre os internautas, que, se apoiando no anonimato, expressam seus preconceitos:

— Internet não é terra sem lei. Se houver interesse investigativo, os agressores serão identificados.

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